Saturday, May 09, 2009

Uma breve introdução às 5 leis da selva

Estou pedalando feito um doido. A trilha tem um metro de largura, mas eu sei que vai estreitar mais à frente. É plano, mas com pedras perigosas cobertas de poeira. Tem areia fofa parecida com areia de praia em alguns lugares. Eu passo devagar pela areia fofa e depois tenho que investir mais energia pra reacelerar. Juazeiros à beira da trilha arranham meus braços e pernas. Minha perna direita está toda cortada, mas o medo mesmo é furar um pneu com um espinho desses.


Escuto o som dos pneus muito cheios deslizando sobre a trilha. É um som seco, constante. Na verdade eu me sinto tenso com ele. É irritante. Me sinto perseguido por ele. É a mesma sensação de caminhar sozinho numa rua escura e ouvir passos atrás de você. Tensão. Ao mesmo tempo sinto que esse barulho minha única companhia nesse momento.


Também escuto minha respiração. Eu respiro e sinto a baforada quente incomodar meu rosto. A garganta está seca e parece que eu engoli cimento. Minha pele – ah, a minha pele – arde. Sinto cheiro da paisagem seca. Cheiro quente, cheiro da poeira, cheiro da falta de vida ao meu redor. No sertão, só o lamento, o xique-xique, o pé de juá, o matuto forte e o ciclista teimoso sobrevivem.


Sinto o gosto da areia nos meus lábios. Sinto mais ainda esse gosto quando uma gota salgada de suor traz essa areia pra minha boca. O suor escorre e parece que está fervendo. Uma gota cai no meu olho de vez em quando. Os óculos escuros estão molhados. Calor horrível. A água acabou faz tempo, é claro. A única água que vi nos últimos 17 quilômetros foi de um açude que estava quase seco. Água imunda. A vaquinha que estava tomando banho lá estava muito melhor que eu.


Lá está uma casa. Não me animo muito. Quase nunca tem alguém nessas casinhas escondidas por trás da serra. Reduzo a velocidade até parar. Piso no chão e acho estranho: a sola dos meus pés parecem muito quentes e me sinto desequilibrado. Marujo depois de meses no mar desequilibra e enjoa na terra. Bato palmas. Uma criança vem e peço água. Ela traz uma jarra d’água surpreendentemente gelada – incrível, mas chega energia elétrica ali! Enche minha garrafa e eu agradeço. Ainda penso em olhar para a água para saber se é muito suja, mas resisto – a sede é grande e não quero constranger meu simpático novo amigo.


Não bebo a água na hora – estava gelada demais. Coloco a garrafa na bicicleta e volto ao meu rumo. Com aquele calor ela esquentou um pouco em pouco tempo. Reduzo um pouco a velocidade e solto as mãos do guidão. Pego a garrafa e enfio água goela abaixo, não sem antes lavar meus lábios cheios de areia – satisfaço a velha carcaça que sofre na bicicleta. Olho pro céu. Completamente limpo. Céu de brigadeiro, como dizem os pilotos. Será que brigadeiros gostam daquela claridade e calor? Se sim, caso forem pro inferno só vão estranhar a comida. A água desce e minha garganta agradece. A trilha fica limpa, lisa feito asfalto e a bicicleta desliza nela. Limpa está minha garganta e a água desliza nela. Limpo está o céu e aquele urubu desliza nele. Limpa está minha alma. Preparada pra que eu deslize nela.

Todo esporte dói. Todo esporte machuca. E olha que o ciclismo é um dos que menos machuca. Uma dúzia de vezes eu me peguei pensando nas razões de eu me expor a isso. Muito tempo depois eu pude perceber que não há razão nisso. Não há um fim. Não há objetivo. Mesmo que houvesse, ele seria incapturável e indescritível. Qualquer tentativa de explicar esses comportamentos primitivos seria uma perda de tempo e uma falta de respeito para com o homem, pois só depois de muito tempo eu percebi que há uma dimensão diferente que eu não conhecia na vontade do homem. Essa dimensão não deve ser questionada ou mensurada, não deve ser tocada nem alterada. Ela é, portanto, sagrada. É o conhecimento claro e simples de que um homem tem que fazer o que ele tem que fazer.